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O risco e a fortuna de se fazer teatro de rua é a disputa sempre em desvantagem do afeto arredio dos passantes, que não estão lá por acaso e têm mais o que fazer. O homem comum que transita pelas calçadas (quando não faz parte da assustadora estatística da exclusão, para quem a vida na rua tem outro sentido), anda apressado e sem tempo para o desfrute do passeio público. Sua atenção é arrebatada por uma profusão de apelos visuais e sonoros, submetida aos ruídos das máquinas e aos gritos histéricos da mercadoria, que se apresenta sem disfarces. É nesse caótico mundo cada vez mais anestésico e individualista que as trupes de teatro de rua tentam instaurar seu universo de ficção e fantasia. Quando logram seu intento, redimensionam o espaço público, fazendo reverberar ecos de uma socialidade soterrada, mas que ainda reconhece no outro seu semelhante e se felicita por esse reconhecimento.
Disposta e bem armada para essa peleja, a Cia. De Teatro Nu Escuro, de Goiânia, levou à Praça 9 de Julho o espetáculo O Cabra que matou as cabras, uma irradiante celebração da vida e da sabedoria popular, cantada sem pudores e liberta dos falsos ditames que acobertam o caráter vulgar e reacionário do “bomgostismo” politicamente correto. Com base na peça medieval de autor anônimo “A farsa do advogado Pathelin” e em romances de cordel, o espetáculo narra com a voz da galhofa e da picardia a saga de um “amarelo” que, explorado pelo patrão comerciante, mata suas cabras e inventa meios de sobreviver num mundo pautado pela vigarice dos grandes.
Com humor desabusado e se valendo de uma mescla de referências da cultura popular, a trupe conquista a atenção da plateia ao dar ênfase ao entrecho cômico, sem cair na tentação de alongar piadas ou deixar-se levar pelos bons resultados de suas gags. Por serem bons narradores, sabem que estão a serviço da fábula, e a apresentam com desenvoltura e frescor, atentos à exigência de estabelecer por meio dela a comunicação efetiva com o público que, aos poucos, se deixa seduzir pelas artimanhas e disparates.
Através de uma estética da sobreposição, ouso dizer encardida, o espetáculo se incorpora ao espaço urbano sem a ilusão de competir com os brilhos ascéticos da publicidade. Os figurinos lembram farrapos e são deliberadamente “mal acabados”, assim como os mínimos e indispensáveis objetos de cena. A cenografia segue o mesmo conceito, sua rusticidade provém menos da intervenção artesanal do que da qualidade mesma dos materiais utilizados.
Essa desavergonhada “falta de gosto”, diz muito sobre como a trupe entende o que é essencial em seu ofício. E é justamente desse entendimento, dessa picaresca sabedoria nascida da observação atenta de mestres anônimos, que provém o encanto da peça. Sua comunicação é grossa sem ser grosseira; popular sem cair no popularesco.
Chama a atenção o recurso à paródia de canções clichês, cantadas sem muito apuro técnico, e que servem de comentário aos episódios. Não se discute sua eficácia na economia da narrativa. Porém, o espetáculo ganharia se houvesse um aprofundamento da pesquisa musical. Da mesma forma que os esquetes de picadeiro e os cordéis enriquecem a encenação, esta ganharia com a substituição dessas peças musicais de reconhecimento imediato por outras, mais genuínas, sem prejuízo da trama.
Detalhe de menor importância em face da vigorosa encenação que sabe transformar as referências populares em munição para o riso e o encantamento.
Fonte: Márcio Marciano / Foto: Fernando Martinez
http://fentepp.com.br/noticias_ver.asp?codigo=216
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