quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Os goianos coadjuvantes da história

Por Nádia Junqueira, em: http://aredacao.com.br/coluna.php?coluna=16361

Três eventos diferentes nos últimos 40 dias me fizeram pensar numa mesma coisa: na história de Goiás e em nossa identidade. Na história contada, na que ainda não é e na que está escondida. Nesta ordem, esses eventos foram o Festival Internacional de Cinema Ambiental, o FICA, no fim de junho, na peça Plural, da Companhia Nu Escuro, que assisti no início de julho e no Encontro de Culturas Tradicionais dos Povos da Chapada, no fim do mês.

Todas as vezes que vou à Cidade de Goiás eu sinto reencontrar com minha história na Serra Dourada, nas ruas de pedra, nos prédios antigos e no Rio Vermelho, sem nem ter família ali. Eu me lembro da primeira vez que visitei a antiga capital, com a escola, aos meus nove anos, depois de estudarmos o ano todo sobre a história de Goiás. Caxias que era e sempre encantada com História, me lembro da emoção de ver se tornar real tudo que foi dito e estudado nas aulas. A cadeia no Museu das Bandeiras, a casa de Cora e os doces, o rio que um dia foi vermelho de mercúrio para extrair ouro. Ficava imaginando o Anhanguera colocando fogo na aguardente e assustando os índios para mostrar o caminho do ouro.

Essa é a história oficial, que me contaram, que li no livro de Augusta Faro, repetida e contada nos museus de Goiás. A história que me impede de ir à antiga Vila Boa e ver aquilo tudo de forma indiferente. Mas, dessa vez, quando passei uma semana em Goiás trabalhando no FICA, me parece que eu não senti essa história tão minha assim. Pela primeira vez, me dei conta de que quem contou e conta, ainda, a história de Goiás tem um sobrenome. E com certeza não são os Ribeiros, por exemplo (meu segundo sobrenome, goiano, por acaso). É a história contada da janela da casa grande. A ótica de quem vê a roça e a senzala de cima, do salto. Ou com chicote na mão. E a minha árvore genealógica não vem daí.

Meu avô era semi-analfabeto. O nome era João, o sobrenome Ribeiro. Amansava burro, criava animais, plantava o que comia. Teve comércio pela cidade e pitava cigarro de palha, o cheiro que levo dele desde que morreu, aos meus seis anos. Já minha avó era alfabetizada e distintamente educada. Além de todos os serviços domésticos de não deixar um João Ribeiro exigente reclamar de nada, fazia doce, vela, costurava para fora e criava nove filhos. Além de primos, sobrinhos ou quem mais passasse pela casa precisando de cuidados.

História corriqueira, não? Deve ser a mesma que mais de 90% dos goianos. Ou, pelo menos, parecida. Essas histórias são pouco contadas nos livros. Se são, quem escreveu, os observava. Os protagonistas não tinham o lápis no punho. É aí que entra a Companhia Teatral Nu Escuro que me emocionou e me deixou muito encucada. A nova peça da companhia que acompanho e admiro se chama “Plural” e conta história de mulheres sertanejas, que deixaram a roça para ir para cidade. Essa história, que parece banal, mas guarda tanta importância quanto a contada por aqueles com sobrenomes que estão nas placas de ruas e praças.

Para conseguirem montar a peça os atores tiveram a fonte de pesquisa dentro de casa: foram ouvir as histórias das próprias mães. E, de repente, aquelas que sempre foram coadjuvantes (ou, na verdade, figurantes) foram protagonistas. A peça acaba provocando riso e emoção. Riso, porque o jeito de falar, os “causos”, a criação das crianças, músicas e brincadeiras fazem parte do mesmo repertório nosso. Emoção porque não se trata de uma trajetória feliz e fácil. Sair da roça para se enfiar numa cidade em que a lógica de vida é completamente diferente é uma história de dar nó na garganta.

Por fim estive, pela quinta vez consecutiva, no Encontro de Culturas dos Povos da Chapada, naquele povoado de ruas de terras a 30 quilômetros de Alto Paraíso chamado São Jorge. Consecutiva porque me dei conta de que não consigo não ir, pelo reencontro. Com a natureza do meu estado (chego a ser etnocentrista para falar das belezas da Chapada) e com as manifestações culturais vivas, sempre presentes, escondidas nos interiores de Goiás. Que não estão na TV, nos rádios, nos festivais e ignorados pela lógica comercial e cultural da cidade grande.

Apresentações de Congada, Folia de Reis, Sussa pelas ruas da vila, pelo palco do Encontro. Aquelas manifestações que passam de pai para filho e que nem se pergunta desde quando existe. Desde quando Goiás nasceu. Desde quando existe catolicismo aqui. E desde quando isso tudo está misturado com a rica existência cultural escrava. Mas essas são as manifestações populares, de todo mundo. Do avô de um que foi folião, do de outro que foi rei do congo. E essas histórias de todo mundo parecem não ter protagonismo nos livros. De tão comuns, parecem ignoradas.

Uma cena, em particular, me marcou. Estava em frente a um restaurante quando um grupo de congada entrou para jantar. Uma menininha de um aninho, dois no máximo (ela não falava) saiu correndo na direção do homem que segurava uma caixa. Ela começou a bater. Ele queria jantar e desde que me entendo por gente criança não pode ficar batendo em instrumento alheio “sem saber tocar”.

Eis que ele diz “bate, pode bater, toma a baqueta”. Ela continuou a bater, bem forte, agora com a baqueta. “Isso, é assim que isso não vai morrer. É assim que a congada existe. Pode bater”. Mais quatro crianças, maiores, chegaram. Ele disse. “Vou jantar, podem ficar tocando. Quando eu voltar vocês me devolvem”. E foi para uma mesa onde a caixa estava bem distante de seus olhos, confiando que aquela experiência das crianças era de fato importante para congada se perpetuar.

Voltei feliz da Chapada, mais uma vez, pelo reencontro. Com minha cultura, com minhas manifestações culturais. Pelos encontros que ela proporciona, por exemplo, numa noite em que estivemos entre violeiros goianos, mineiros e coquistas pernambucanos. Mas incomodada em pensar que essa cultura de todo mundo, de todos os goianos, está escondida e difícil de se conhecer e se encontrar. São tratadas como cultura e manifestações dos outros. Não nossas, da cidade, de Goiânia. Marginalizada, ela continua sendo a cultura coadjuvante.

E voltei a pensar no meu avô e em minha avó, os outros coadjuvantes, que junto aos outros goianos, não escreveram a história. No dia em que assisti a peça da Nu Escuro, minha avó, de 86 anos, estava no hospital. Havia quebrado fêmur e feito cirurgia arriscada, para idade dela. Fênix que é, se recuperou e está muito bem. Mas acredito que foi muito providencial em um dia só: assistir à peça e ver que a qualquer momento minha avó pode não estar aqui e eu sigo a vida sem saber de uma história que está bem perto de mim.

O que todos esses três eventos me fizeram pensar foi de que preciso ir, urgentemente, a Morrinhos visitar minha avó. Quero sentar ao lado dela e pedir: vovó, me conta tudo. Da sua história, do meu avô, da sua família, de todos os causos. Quero aproveitar de sua lucidez e pedir para que ela me conte tudo de que sua memória é capaz. E quero escrever e compartilhar com minha família. “Hoje você é minha protagonista, vovó”, vou lhe dizer.

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