segunda-feira, 17 de novembro de 2014

UM CABRA NA RUA





            A origem do teatro ocidental  foi na rua  e está relacionada com a necessidade que o homem tem de se manifestar, ele surgiu na vontade da festa, do homem querendo se relacionar. Na vontade de ir para rua, de rir de falar, do coletivo e do Ritual.  Das festas dionisíacas até hoje se encontra em constante movimento, se transformando, desdobrando e até permanecendo em várias formas da mesma linguagem. É uma arte rizomática que em toda sua trajetória percebe- se momentos de impulso e de declínio, de valorização e de proibições ora do estado ora da igreja transformando estes artistas em nômades. A arte do encontro, do jogo, da resistência “de colocar a boca no trombone”.  Mesmo depois de tantos espaços demarcados em caixas italianas, elisabetanas, das caixas pretas, o teatro de rua sempre resistiu. Como ele resistiu?
            Uma arte que depende de uma única, porém coletiva, relação entre o artista e o público, depende da vontade de uma pessoa expressar um texto verbal ou corporal e de outra assistir.  O teatro de rua possibilita esta relação horizontal. Eu como transeunte posso me envolver ou sentir repulsa por uma encenação, posso ficar ou posso continuar meu caminho! Daí começa o jogo, um jogo de sedução de envolvimento e de parceria, o ator enquanto personagem terá que convencer o passante de ficar. Não depende de um valor que eu paguei para estar ali, depende da relação que se estabelece. É claro que o artista de rua também quer seu chapéu cheio que para ele vai de acordo com o merecimento pois como dizem “Os Parlapatões,  Patifes e paspalhões:  é  “Um chapéu, um tijolo e uma flor“ [1].
            A rua possibilita inúmeras formas de encenações, ela é relativa à estética e a ideologia que os artistas querem dialogar. Do teatro grego com suas encenações lotadas que por vezes duravam dias; à famosa comédia Dell´art; também os entra e sai dos Freaks shows em feiras no inicio da modernidade; e as invasões de espaço publico muito comentado e utilizado pelos artistas pós modernos, o teatro de rua se apóia na diversidade e está sempre em movimentos, sempre feito diferente, sempre único.
Trago a experiência de uma apresentação em Salvador, no elevador Lacerda, um local bonito e muito vivo com grande fluxo de pessoas. Começamos nossa encenação com um publico menor, à medida que as cenas iam acontecendo o publico se aglomerava mais, no meio da apresentação aconteceu algo inusitado, uma passeada de militantes da marcha dos sem terras surgiram de um lado do largo  e inevitavelmente a peça e a passeata iriam se cruzar. Quando os manifestantes cruzaram a encenação eles ficaram, e aumentaram mais a roda, era centenas de pessoas, deixando a militante puxadora da manifestação em estado de loucura, ela entrava na cena, conversava com os personagem, os personagens respondiam, gritava que eles tinham horários, tinha que seguir. Ninguém arredou o pé, ela entrou novamente na cena convidou para seguir encenando na passeata, público não mexeu, estavam no jogo, por fim caiu uma baita chuva, daquelas que dizemos “o céu se abriu” o Hélio chama um canto e fala “Vamos parar”, eu respondi: “como? a mulher entrou duas vezes e essa chuva não fizeram a galera sair, nós que vamos parar?” A relação estava estabelecida, o jogo estava acontecendo e a parceria tinha que ser completada. O publico gozou da sua liberdade de ficar, de alterar o fluxo, por alguns minutos o riso foi mais importante que a política. E o riso também é libertador.
Em outra apresentação o contratante fez uma exigência: não poderíamos passar o chapéu (que é uma tradição no teatro de rua). Ok. Apresentamos e durante a apresentação uma moradora de rua que freqüentava a praça pegou um copinho e ficava passando o copinho para as pessoas colocarem dinheiro, no final do espetáculo, agradecemos como normalmente, ela chegou no cenário e virou o copinho em um pinico nosso, que usamos em cena. Ela fez cumpriu a tradição.
É deste tipo de experiência onde eu encontro a resposta da pergunta acima, por que resistiu? Por que a rua é para todos mais também é para os essencialmente abertos para o jogo, aqueles corajosos, porém, é paradoxal, ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de felicidade e de angústia.
Estar na rua é  ter consciência da própria perecividade.




[1]  Frase escrita na entrada do espaço dos Parlapatões, Patifes e  paspalhões, é a descrição da sua logomarca que segundo eles :  "Um chapéu, um tijolo, uma flor. O chapéu representa a nossa sobrevivência. O tijolo mostra o peso do trabalho. E a flor?... A flor é pra colocar um pouco de poesia nessa merda toda!"



O CABRA QUE MATOU AS CABRAS
Prêmio Artes na Rua 2015
Em breve divulgaremos a programação.

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